terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Auto Biografia de Luís de Camões

9 De Junho de 1580

Minha amada Dinamene:

Desde que me deixaste, e até antes disso, a minha vida tem sido miserável. Estes meus últimos anos foram amargurados pela doença e pela miséria, e já perdi todas as minhas forças para lutar por uma vida pacífica, por uma vida sem dor. Sem a dor que sinto todos os dias por não estares aqui. Agora quase que não me consigo mexer, estou fraco, e a saudade escorre-me pela face, e a doença consome-me cada vez mais, dia após dia, e não sei quanto tempo mais irei conseguir abrir o meu outro olho, o que se salvou das batalhas em Ceuta.

Já não sou o que era, e já não serei mais aquele homem que tu conheceste, corajoso, e a enfrentar o desespero e a solidão todos os dias. Agora sou apenas um pequeno trapo de 55 anos que outrora fora um poeta renascentista. Estou velho, e ninguém me ajuda, ninguém me dá de comer. Vivo na miséria completa. Devia de te ter ouvido, quando dizias que o meu estilo de vida não era o melhor. Fui apenas um homem que escrevia ao sabor de uma irónica despreocupação, vivendo apenas do destino, boémio e desregrado. Agora sinto necessidade de escrever, de relembrar a minha passagem pelo mundo, de te relembrar, homenagear-te e referir a importância que conquistaste na minha vida.

Tudo começou com o meu nascimento, em 1524, na grande Lisboa. Sou filho de Ana de Sá e Macedo, e de Simão Vaz de Camões, pessoas de classe média. Humildes e trabalhadores, sim. Cresci nos braços Lusitanos, na ambição portuguesa por novos territórios, e numa educação cuidada e fundamentada no Latim. Estudei filosofia e literatura na universidade de Coimbra, de onde nasceu a minha grande paixão pela poesia, apesar das minhas obras terem variado entre os géneros teatral, lírico e épico. Nela, dei a conhecer a minha vida, o amor, a saudade, a despedida, o desespero da distância e o apelo às coisas simples, como a natureza, a beleza, ou a contemplação. Nos meus sonetos, falo do amor, da vida, e da alma feminina. Para mim, a mulher não é apenas um pedaço de carne, mas sim um ser angélico. Algo que desperta o amor existente dentro de cada homem. Depois dos estudos, frequentei a corte de Dom João III, e aí iniciei a minha carreira como poeta. Porém, na corte, envolvi-me com damas da nobreza, e, devido ao facto de uma delas, a infanta D. Maria, me ter apunhalado o coração, matando assim o amor que sentia por ela, eu senti necessidade de me exilar em África. Essa foi a minha desgraça... Foi aí que perdi o meu olho direito durante um combate, em Ceuta. Pensei que a minha vida estivesse arruinada, naquele ano ainda pensei em deitar tudo a perder, mas algo de extraordinário, uma força fantástica sussurrava por entre a brisa quente de África, e confiou-me coragem para continuar a viver, para continuar a escrever - " Não desistas agora"...

Quando voltei para Portugal, uma nova aventura começou, pois, por ter ferido Gonçalo Borges, o arrieiro do Rei, fui preso, mas perdoado de seguida. No dia do perdão, o meu coração exultou de alegria, porque iria partir para o Oriente - o meu grande sonho... A vida lisboeta já não me contentava, precisava de aventura, de me distrair, de conhecer pessoas novas, de voltar a ter inspiração para a escrita. Estive três anos na Índia, e voltei a Portugal, só que fui preso novamente, por não pagar as minhas dívidas... Mas, quando fui libertado, fui para Macau, exercer o cargo de provedor mor de defuntos e ausentes. Apesar das minhas condições de vida não terem sido as melhores, isso não alterou as minhas expectativas em relação ao Oriente. Vivi e escrevi vários textos com a inspiração de novas culturas e do grande povo português, a minha doce pátria. Voltei a Goa, mas o meu barco naufragou na viagem para a foz do Rio Mecom. Salvei-me com bastante sorte, nadando com um braço e salvando, com o outro, o manuscrito da imortal epopeia, a minha grande obra, a razão de ainda não ter perdido a coragem para viver, a obra que começara a escrever em Macau - Os Lusíadas. Mas esta viagem marcar-me-á para sempre, como sabes, pois foi nela que o meu coração se deixou petrificar pela angústia da tua morte. Vi-te morrer mesmo diante dos meus olhos, e nada mais pude fazer para te ajudar, minha doce Dinamene. Ah o amor... Que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê… Desejaria ter-me deixado levar pela brisa, desejaria ter-me unido a ti, ter-me difundido contigo, ter caído também àquele mar de desespero, mas não consegui. Não sei se foi bom ou mau, apenas sei que preciso de ti, de voltar a ser irradiado pelo teu sorriso, porque tu fazias brilhar o sol para mim, só para mim… Perdão.

Nos meus poemas, descrevo-te como se fosses a minha deusa, o meu sol, a minha vida. A tua presença fazia serenar o vento, fazia nascer as flores, e até enternecer os troncos das árvores. Porquê? Simplesmente foste e continuas a ser sempre sumptuosa no meu coração.

Continuei a escrever Os Lusíadas, já sãos e salvos do mar remoto. Em 1569, regressei a Lisboa. Três anos mais tarde, em 1572, publiquei a primeira edição desta obra, que li a sua Majestade, o Rei D. Sebastião. Esta epopeia relata a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, à volta da qual se vão descrevendo outros episódios da história de Portugal, glorificando sempre o povo português. É constituída por 10 cantos com estrofes de 8 versos com rimas emparelhada e cruzada e por versos com 10 sílabas métricas. Citado por muitos, o poema, escrito com mestria narrativa exemplar, representa o exercício em perfeição da Língua Portuguesa, moderna, dúctil, e rica em complexidade expressiva e em matrizes líricas de excepção.

Depois, fui para Moçambique, e como não tinha mais dinheiro para voltar para a minha pátria, ali fiquei. Apenas um amigo me ajudou, vendo a miséria que se concentrava à minha volta, e levou-me para Portugal.

E em Portugal fiquei, e em Portugal irei padecer. Mas antes disso, só quero homenagear-te mais uma vez, minha doce Dinamene. Podes não ter sido o único amor da minha vida, mas és a razão de ter a minha alma ferida agora, e isso é o que mais importa.

O meu coração sente uma dor profunda ao escrever estas últimas palavras, mas o amor continua a ser um ser angelical diante da saudade que me escorre na face.

Até um próximo reencontro,

Luís Vaz de Camões.

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